terça-feira, 31 de março de 2015

Economia de partilha



Sharing economy, em inglês. traduz-se dificilmente por “economia da partilha” em Português. E, no entanto, designa bem esta economia, que apesar de entre nós não haver ainda uma designação aceite por todos, alguns chamam de “colaborativa”. Baseia-se na colocação no mercado do uso de um bem que alguém tem a posse. A viatura e a casa são os bens mais caros, propriedade da maoria das pessoas, e foi através da colocação à disposição de veículos e quartos, até mesmo apartamentos inteiros, que a economia colaborativa levantou voo.

Um amplo espectro e contornos fluidos, especialmente quando se trata de quantificar o valor dos bens e serviços trocados, bem como atividade associada criada. Uma coisa é certa, o potencial é visto como enorme. A PriceWaterhouseCoopers realizou uma extensa análise quantitativa que publicou no verão de 2014, sobre o potencial de crescimento deste sector: No quadro da amostra utilizada, inclui-se financiamento participativo (Kickstarter, por exemplo), o "pessoal" online (trabalho temporário à tarefa...), aluguer sazonal (Airbnb, HouseTrip ...), a partilha de carro (BlaBlaCar) e de "streaming" audio e vídeo. A empresa estima em 335,000 biliões de dólares (309 biliões de euros) a dimensão desta economia em 2025, contra 15 biliões hoje.

Bom desempenho para um sector tão jovem, mas cujas bases foram lançadas há muito tempo. Os historiadores da sharing economy encontram as suas origens nos "commons", terras geridas colectivamente na Inglaterra medieval, detidas por senhores feudais, mas que permitiam a qualquer pessoa ajudar a cuidar das terras ficando com parte dos seus frutos. Três séculos após a extinção deste regime, o tema do uso renasce, impulsionado pelas grandes inovações tecnológicas, mas também por um ambiente económico propício à criatividade.

O decréscimo dos preços de acesso à internet e a democratização dos smartphones popularizaram o uso de sites e aplicações para telemóveis, e alguns bens básicos tornaram-se cargas pesadas: O preço do imobiliário experimentou cinco anos de crescimento quase ininterrupto em todos as principais metrópoles do mundo, e a posse de uma viatura, em cidade, tornou-se cara. Neste contexto, a utilização da capacidade pelo seu uso, tornou-se, na década de 2010, mais importante do que a propriedade.

Sites de partilha como o Airbnb, HouseTrip ou Lyft (grande concorrente do Uber nos EUA) permitem gerar um rendimento adicional a muita gente que esteja disposta a optimizar a utilização dos seus bens. 

Este novo tipo de economia dá também às famílias ou empresas, oportunidades para economizar dinheiro em serviços incontornáveis, tais como as deslocações e estadias: A desintermediação que oferece plataformas on-line baixam automaticamente o preço dos bens oferecidos, bem como o desenvolvimento de tecnologias de pagamento através de telemóvel (e agora os relógios com a Apple) tem desinibido os compradores mais desconfiados. Finalmente, geolocalização e a Internet móvel aproximam os consumidores dos serviços disponíveis. A confiança é agora dada através dos sistemas de recomendação (tripadvisor, etc), de classificação e comentários que vão substituído gradualmente a classificação administrativa

Esta economia de partilha tem um visual inovador, amigável ou ambientalmente amigável. Numa altura em que estas start-ups que não têm 10 anos viram a sua cotação em bolsa a levantar voo: 40 biliões de dólares para Uber (mais do que a Delta Airlines), 13 biliões para a Airbnb -, os discursos críticos, no entanto, multiplicam-se . Estamos testemunhando um retorno ao conceito dos “commons", ou, pelo contrário, ao mercado no seu estado mais puro?. Muitos suportam a segunda hipótese: melhorando a taxa de utilização dos recursos, a economia de partilha, gera uma maior rendimento.

Esta economia também está longe de ser igualitária: é principalmente a classe média que beneficia deste desenvolvimento, ao contrário das camadas mais modestas, que têm menos activos para colocar no mercado. Além disso, essas práticas são muito facilmente industrializáveis: um site de partilha pode, com alguns investidores ricos e um punhado de bons engenheiros, transformar-se num peso pesado e capturar a maior parte da criação de valor. E isto para reinvestir ... normalmente em capital. Este é tipicamente um efeito “rebote”: uma poupança feita de um lado transforma-se num gasto do outro lado.»

Com a economia de partilha, é também o trabalho que muda com o ressurgimento inesperado da noção de "artesão" - o trabalhador que domina sua produção de A a Z. Se os mais optimistas veem nas plataformas colaborativas a ocasião de se re-apropriar da ferramenta de trabalho, outros a olham-na como uma fábrica de temporários sem salário fixo ou segurança social, e sem muitos direitos para se defender. Encontramo-nos com um sistema económico que está ali apenas para satisfazer os que compraram e os que os financiaram. Essa deriva começa a fazer estragos: nos Estados Unidos, a procura de recrutamento da Uber e de outras empresas de Veículos de Passageiros com Condutor (VPC) é tal, e a necessidade de trabalho tão cruel, que particulares não hesitam em pedir dinheiro emprestado - normalmente a preços elevados, porque muitas vezes têm um mau histórico de crédito - para comprar um sedan preto que lhes permitirá integrar a comunidade motoristas Uber.

A necessidade de chegar em primeiro lugar e ser o maior para ganhar o mercado (“winner takes all") conduz também a ir buscar dinheiro onde ele flui em abundância. Em França, grande parte das,10.000 empresas que repartem os negócios da "colaboração" são apoiadas por investidores muito tradicionais - os grandes bancos ou fundos de capital de risco. Mas os critérios para essas instituições em termos de retorno sobre o investimento não mudaram ao longo dos anos.

Se engordar é uma obrigação, capturar a máxima margem é outra. Não é por acaso que este tipo de plataforma oferece mais do que um serviço. A gente do marketing costuma dizer, que a margem mais elevada a retirar de um produto é, no momento do consumo -  o estágio da "experiência" e, portanto, já longe da produção, transformação e serviço. Quando Airbnb refina sua aplicação para dar ao internauta a impressão de que ele está surfando um site de aluguer de luxo, onde será recebido com todas as garantias possíveis, gera uma experiência positiva. E recolhe os frutos financeiros.

Será necessária a introdução de legislação e regulação nesta economia, se quisermos evitar acabar numa "tragédia dos commons", posta em evidência em 1960 pelo norte-americano Garrett Hardin, que explica: Num campo aberto, cada criador deve pastar o melhor gado possível - mesmo empobrecendo o terreno para outros criadores, mas também para si mesmo.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Saúde! Prost! Cheers! Salute!

É uma coisa quase universal: O som dos copos que se chocam num brinde. O que muda de um país para outro, é a natureza do néctar que se encontra dentro dos copos. Vinepair, um web site com conteúdos sobre o vinho e a cerveja, criou um mapa que mostra a cerveja preferida em cada país do mundo. Para o fazer, o site utilizou dados provenientes de "dezenas de fontes", de estudos e informações directamente dos fabricantes, para determinar as quotas de mercado de cada território. Certos países como Angola ou Mongólia foram excluídos, por não haver dados disponíveis. Em Portugal, é a Sagres a preferida dos Portugueses.

sábado, 28 de março de 2015

A Casa da Música, A História da Alemanha e a Ausência J. S. Bach

A Casa da Música tem este ano o propósito de contar a história da Alemanha através dos seus maiores compositores, desde o século XVI até à actualidade. Do programa fazem parte obras dos compositores, Hassler, Schutz, os concertos para piano de Beethoven apresentados por Pedro Burmester e a Orquestra Sinfónica, Weber e Wagner. Do século XX, teremos a tradição coral segundo a interpretação de Stochausen, e finalmente o contemporâneo Helmut Lachemann, que segundo o programa é "...um dos mais inovadores compositores das últimas décadas". 

Sucede, que do meu ponto de vista, a proposta da Casa da Música no ano da Alemanha, não dá o devido relevo a J.S.Bach.

Em Janeiro fui assistir a um concerto pela Orquestra Barroca Casa da Música com o título "No tempo de Bach". O Maestro Laurence Cummings dirigiu e tocou cravo de sete compositores alemães do barroco, sem uma única composição de J.S.Bach. Percebo que "No tempo de Bach" não significa que ele esteja presente, mas não concebo música barroca alemã sem uma única obra do grande compositor. 

De facto, o programa deste concerto referia que "o maestro Laurence Cummings nos levava ao encontro da música do seu tempo, de compositores com quem Bach conviveu ou cuja música ouviu e transcreveu. Do celebérrimo Canon de Pachelbel, professor do irmão mais velho de Bach, à música dos seus primos Johann Ludwig e Johann Bernhard ou do seu filho mais novo, imortalizado como o Bach londrino, passando por um dos concertos do seu compadre Georg Telemann, esta é uma viagem ao glorioso mundo musical com que Bach conviveu.", e portanto J.S.Bach estaria ausente.

Olhando para o programa da Casa da Música para o resto do ano, e tendo presente o tema de 2015, deveríamos ter mais oportunidades de ouvir obras de J.S.Bach, que para além de ser considerado o maior nome da música barroca, por muitos é tido como um dos maiores compositores de sempre.

Os Concertos de Brandenburgo, Cravo Bem-Temperado, Tocata e Fuga em Ré Menor, entre outras, são imprescindíveis para entender o período barroco e a música clássica alemã. 


sexta-feira, 27 de março de 2015

Voltar aos anos 60


Imagine que quer encomendar um verdadeiro Mini de origem,  num estado muito próximo de novo... É possível em Paris, em 2015, através da "My Mini Revolution" uma empresa de jovens apaixonados pela marca que recuperam carros ou chassis antigos para reconstituir um Mini dos anos 60 -70. Uma muito boa, maneira de andar na estrada e de se distinguir dos outros cum um suplemento de alma.

Se, depois de 2001, o renascimento do Mini pela BMW é um enorme sucesso comercial, torna-se difícil de não sentir uma verdadeira ternura pela versão original. Não é raro ver ainda a circular este pequeno automóvel ultra-urbano com o seu charme particular. Não obstante foram vendidos 5,3 milhões de modelos desde a sua criação até ao ano 2000. Produzido a partir de 1959 pela empresa BMC (British Motor Corporation), o Mini foi uma resposta britânica à crise do canal do Suez (1956), que provocou um racionamento da gasolina no Reino Unido, e que também tivemos em Portugal.


Desde a sua concepção pelo engenheiro Alec Issigonis, o Mini afirmou-se como uma revolução: pela sua notável habitabilidade se olharmos para as suas dimensões, devido, por um lado, à colocação das rodas de 10 polegadas nos quatro cantos do automóvel, e por outro, pela posição transversal do seu bloco motor-caixa colocados à frente, numa época em que a concorrência (VW carocha e Fiat 500) insistia na propulsão e motor atrás.

Alguns irredutíveis continuam a não quer ceder ao novo Mini, lançado pela BMW, proprietária desde 1994, e para aqueles só o primeiro é o genuíno. 

Ao longo dos anos quis ter um original, mas por uma razão ou por outra, a ocasião não apareceu, e conduzo um dos novos há dois anos. Não tem nada a ver com o original, mas é sem dúvida um carro original, agora mais robusto e com menos ruídos, sem ter abandonado aquele velocímetro redondo  no centro do tablier que o torna único.

quarta-feira, 25 de março de 2015

"Heretic: Why Islam Needs a Reformation Now”

Este ensaio é adaptado do novo livro de Ayaan Hirsi Ali, "Heretic: Why Islam Needs Reformation" de Ayaan Hirsi Ali, lançado ontem pela editora Harper Collins. O olhar que tem a autora sobre o actual Islão, o comportamento dos fanáticos e do resto dos crentes muçulmanos é extremamente interessante, bem como as propostas de "reforma".

“As fronteiras do Islão são sangrentas", escreveu o falecido cientista político Samuel Huntington em 1996 "e por isso são suas entranhas." Quase 20 anos depois, Huntington parece mais certo do que nunca. De acordo com o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, pelo menos 70% dos mortos em conflitos armados em todo o mundo, no ano passado, resultaram de guerras envolvendo muçulmanos.

Em 2013, houve cerca de 12 mil ataques terroristas em todo o mundo. A parte de leão foi em países de maioria muçulmana, e muitos dos outros foram realizados por muçulmanos. De longe, o maior número de vítimas da violência muçulmana - incluindo execuções e linchamentos, não capturados pelas estatísticas - são os próprios muçulmanos.

Nem toda essa violência é explicitamente motivada pela religião, mas uma grande parte dela é. Creio que é tolice insistir, como os líderes ocidentais habitualmente fazem, que os actos de violência cometidos em nome do Islão, podem de alguma forma serem dissociados da própria religião. Por mais de uma década, a minha mensagem foi simples: O Islão não é uma religião de paz.

Com isto não quero dizer que a crença islâmica faz de todos os muçulmanos violentos. Este não é manifestamente o caso: Há muitos milhões de muçulmanos pacíficos no mundo. O que eu digo é, que a chamada para a violência e a sua justificação, estão explicitamente mencionados nos textos sagrados do Islão. Além disso, essa violência teologicamente sancionada, está lá para ser activada por qualquer tipo de crimes, incluindo, mas não limitada a apostasia (punida com pena de morte na Arábia Saudita) adultério, blasfémia e até mesmo algo tão vago como ameaças à honra da família ou à honra do próprio Islão.

Não é apenas a Al Qaeda e Estado islâmico que mostram a face violenta de fé e prática islâmica. No Paquistão, qualquer declaração crítica do Profeta ou do Islão é rotulada como blasfémia e punível com a morte. É a Arábia Saudita, onde as igrejas e sinagogas são proibidas e onde decapitações são uma forma legítima de punição. É Irão onde o apedrejamento até à morte é uma punição aceitável, e os homossexuais são enforcados por seu “crime".

A meu ver, o problema fundamental é que a maioria dos muçulmanos de outra forma pacíficos e cumpridores da lei, não estão dispostos a reconhecer, muito menos capazes de repudiar, o mandato teológico da intolerância e violência contida nos seus próprios textos religiosos. Eles simplesmente não vão clamar que a sua religião foi "sequestrada" por extremistas. Os assassinos de Estado islâmico e do Boko Haram, citam os mesmos textos religiosos que todos os outros muçulmanos no mundo consideram sacrossantos.

Em vez de falar da religião muçulmana utilizando brandos clichés, no Ocidente precisamos de desafiar e debater a própria essência do pensamento e da prática islâmica. Precisamos de responsabilizar o Islão pelos actos de seus adeptos mais violentos e exigir que reformem ou repudiem as crenças fundamentais que são usadas para justificar esses actos.


Como se sabe, o Ocidente tem experiência com este tipo de projeto reformista. É precisamente o que ocorreu no judaísmo e cristianismo ao longo dos séculos, como ambas as religiões gradualmente, expeliram as passagens violentas de seus próprios textos sagrados, para o passado. Muitas partes da Bíblia e do Talmude refletem normas patriarcais, e ambas também contêm muitas histórias da dureza humana e da retribuição divina. Como o presidente Barack Obama disse no discurso na National Prayer Breakfast no mês passado, "Lembrem-se que durante a época das Cruzadas e da Inquisição, as pessoas cometeram actos terríveis em nome de Cristo.”


No entanto, hoje, porque as suas crenças passaram por um processo longo e significativo de Reforma e do Iluminismo, a grande maioria dos judeus e cristãos têm vindo a ignorar as escrituras religiosas que instam à intolerância ou violência. Existem franjas ortodoxas em ambas as religiões, mas são verdadeiras franjas. Lamentavelmente, no Islão, é o contrário: são aqueles que procuram a reforma religiosa que constituem a franja.

Qualquer discussão séria sobre o Islão deve começar pelo seu credo nuclear, que é baseado no Corão (as palavras que se diz terem sido reveladas pelo anjo Gabriel ao Profeta Maomé) e do Hadith (as obras que acompanham e detalham a vida e a palavra de Maomé). Apesar de algumas diferenças sectárias, este credo une todos os muçulmanos. Todos, sem excepção, sabem de cor as seguintes palavras: "Eu testemunho que não há outro Deus além de Alá; e Maomé o seu profeta ". Esta é a Shahada, a profissão de fé muçulmana.

Após 10 anos de tentativas deste tipo de persuasão, ele e seu pequeno grupo de crentes foram para Medina, e a partir desse momento, a missão de Maomé tomou uma dimensão política. Não crentes ainda foram convidados a submeter-se a Alá, mas depois de Medina, eram atacados se recusavam a submeter-se a esta nova religião. Se derrotados, tinham duas opções: a de se converter ou morrer. (Judeus e Cristãos poderiam manter a sua fé, se submetidos, pagando um imposto especial). Nenhum símbolo representa mais a alma do Islão do que o Shahada. Mas hoje há uma disputa dentro do Islão sobre a propriedade desse símbolo. Quem possui a Shahada? São aqueles muçulmanos que querem enfatizar os anos de Maomé em Meca ou aqueles que são inspirados pelas suas conquistas após Medina? Nesta base, eu acredito que nós podemos distinguir três diferentes grupos de muçulmanos

O primeiro grupo é o mais problemático. São os fundamentalistas que, quando dizem que a Shahada, significa: " Temos que viver pela letra estrita do nosso credo", planeiam um regime baseado na sharia, a lei religiosa islâmica. Eles defendem um Islão em grande parte ou completamente inalterado com a versão original do século VII. Mais, consideram uma exigência da sua fé que querem impôr a todos os outros.

Vou chamá-los muçulmanos de Medina, que vêem a imposição forçada de Shariah como seu dever religioso. Eles não visam apenas obedecer aos ensinamentos de Maomé, mas também emular a sua conduta guerreira após sua mudança para Medina. Mesmo se eles próprios não praticam a violência, não hesitam em aceitá-la.

São os muçulmanos de Medina que chamam aos judeus e cristãos "porcos e macacos." São os muçulmanos de Medina que prescrevem a morte pelo crime de apostasia, a morte por apedrejamento por adultério e a forca para a homossexualidade. São ainda, os muçulmanos de Medina que colocam as mulheres com burcas e que lhes batem se deixarem as suas casas sozinhas ou se o véu não estiver devidamente colocado.


O segundo grupo, está em clara maioria em todo o mundo muçulmano - constituído de muçulmanos que são leais ao credo nuclear e o adoram com devoção, mas não estão dispostos a praticar a violência. Designo-os por muçulmanos de Meca. Como os cristãos ou judeus devotos que frequentam os serviços religiosos diariamente e respeitam as regras religiosas, no que comer e vestir, os muçulmanos de Meca também se concentram na observância religiosa. Eu nasci na Somália e fui criada como uma muçulmana de Meca. Assim eram a maioria dos muçulmanos de Casablanca a Jacarta.

No entanto, os muçulmanos Meca tem um problema: As suas crenças religiosas estão numa tensão desconfortável com a modernidade - o complexo de inovações económicas, culturais e políticas que não só reformulou o mundo ocidental, mas também transformou radicalmente o mundo dos países em desenvolvimento, para o qual o Ocidente exportou este modo de vida. Os valores racionais, seculares e individualistas da modernidade são fundamentalmente corrosivos das sociedades tradicionais, particularmente hierarquizadas, baseadas no sexo, idade e do inerente status.

Presos entre dois mundos, o da crença e da experiência, estes muçulmanos estão envolvidos numa luta diária para aderir ao Islão, num contexto de uma sociedade que desafia em cada momento os seus valores e crenças. Muitos são capazes de resolver esta tensão retirando-se em enclaves auto-fechados. Isso é designado por cocooning, uma prática em que os imigrantes muçulmanos se fecham a influências externas, permitindo apenas uma educação islâmica para os seus filhos e não se integrando na comunidade não-muçulmano em geral.

A minha esperança é a de envolver este segundo grupo de muçulmanos - mais perto de Meca do que Medina - num diálogo sobre o significado e a prática da sua fé. Eu reconheço que esses muçulmanos não são susceptíveis de responder a uma chamada para reforma doutrinária de alguém que eles consideram como uma apóstata e infiel. Mas eles podem reconsiderar se eu os conseguir convencer a pensar em mim não como uma apóstata, mas como um número crescente de pessoas nascidas no Islão que têm procurado pensar criticamente sobre a fé. É com este terceiro grupo - apenas alguns dos quais deixaram Islão completamente - que eu agora me identifico.

Estes são os dissidentes muçulmanos. Alguns de nós foram forçados, pela experiência, a concluir que não podíamos continuar a ser crentes; Ainda permanecemos profundamente comprometidos no debate sobre o futuro do Islão. A maioria dos dissidentes são crentes reformadores - entre eles, clérigos que têm vindo a perceber que sua religião deve mudar para que os seus seguidores não devam ser condenados a um ciclo interminável de violência política.

Quantos muçulmanos pertencem a cada grupo? Ed Husain do Conselho de Relações Exteriores estima que apenas 3% dos muçulmanos do mundo, entendem o Islão nos termos militantes que eu associo com o tempo de Maomé em Medina, ou seja 48 milhões de um universo 1,6 bilhão de fiéis, ou 23% da população do globo. (Eu elevaria o número significativamente, com base em dados de pesquisa sobre atitudes em relação à Shariah em países muçulmanos.)

Em qualquer caso, independentemente dos números, foram os muçulmanos de Medina que capturaram a atenção do mundo nos media, em demasiadas mesquitas e, é claro, no campo de batalha.

Os muçulmanos de Medina representam uma ameaça não apenas para os não-muçulmanos. Eles também minam a posição dos muçulmanos de Meca que tentam levar uma vida tranquila em seus cocoons culturais em todo o mundo ocidental. Mas aqueles sob a maior ameaça são os dissidentes e reformadores dentro do Islão, que enfrentam o ostracismo e a rejeição, que devem enfrentar todo tipo de insultos, que têm que lidar com as ameaças de morte, ou com a sua própria morte. 

Para o mundo em geral, a única estratégia viável para conter a ameaça representada pelos muçulmanos de Medina é colocar-se ao lado dos dissidentes e reformadores para os ajudar a fazer duas coisas: em primeiro lugar, identificar e repudiar as partes do legado de Maomé que convocam os muçulmanos à intolerância e guerra, e, segundo, convencer a grande maioria dos crentes - os meca-muçulmanos - a aceitar essa mudança.

O Islão está numa encruzilhada. Os muçulmanos precisam tomar uma decisão consciente para confrontar, debater e, finalmente, rejeitar os elementos violentos dentro da sua religião. Até certo ponto - não menos importante, por causa da repulsa generalizada com as atrocidades do Estado islâmico, da Al Qaeda e do resto - este processo já começou. Mas ele precisa de liderança dos dissidentes, e eles por sua vez, não tem nenhuma chance sem o apoio do Ocidente.

O que é necessário que aconteça para que possamos derrotar os extremistas para sempre? Ferramentas económicas, políticas, judiciais e militares têm sido propostas e algumas delas implementadas. Mas eu acredito que isto terá um pequeno efeito a menos que o próprio Islão se  reforme.

Essa reforma tem sido reclamada por várias vezes, pelo menos, desde a queda do Império Otomano e da posterior abolição do califado. Mas eu gostaria de especificar exatamente o que precisa ser reformado.

Identifiquei cinco preceitos centrais ao Islão que se tornaram resistentes às mudanças históricas e adaptação aos tempos. Somente quando a nocividade destas ideias forem reconhecidas e repudiadas, uma verdadeira Reforma Muçulmana será alcançada.

Aqui estão as cinco áreas que requerem alteração:
  1. Estatuto semi-divino de Maomé, juntamente com uma leitura literal do Corão. Maomé não deve ser visto como infalível, e muito menos como uma fonte de ordem divina. Ele deve ser visto como uma figura histórica que uniu as tribos árabes num contexto pré-moderno que não pode ser replicado no século XXI. E, embora o Islão afirme que o Corão é a palavra literal de Deus, ela é, na realidade histórica, um livro que foi moldado por mãos humanas. Grande parte do Corão simplesmente reflete os valores tribais do contexto árabe do século VII do qual emergiu. Valores espirituais eternos do Corão devem ser separados dos acidentes culturais do local e data de seu nascimento.
  2. A supremacia da vida após a morte. O apelo ao martírio irá desaparecer somente quando os muçulmanos atribuírem um maior valor para aos frutos desta vida do que aqueles prometidos no futuro.
  3. Shariah, a vasta legislação religiosa. Os muçulmanos devem aprender a colocar a dinâmica, das leis feitas por seres humanos acima dos aspectos da sharia que são violentos, intolerantes ou anacrónicos.
  4. O direito individual dos muçulmanos para impor a lei Islâmica. Não há lugar no mundo moderno para a polícia religiosa, vigilantes e clérigos politicamente capacitados.
  5. O imperativo para travar a jihad, ou guerra santa. O Islão deve tornar-se uma verdadeira religião de paz, o que significa rejeitar a imposição da religião pela espada.
Eu sei que estes argumentos vão fazer com que muitos muçulmanos se sintam desconfortáveis.
Alguns se ofenderão com as minhas propostas de alterações. Outros alegarão que eu não estou qualificada para discutir estas complexas questões de teologia e direito. Eu também tenho medo - genuinamente receosa - que eles possam fazer com que alguns muçulmanos fiquem mais ansiosos em me silenciar.

Mas este não é um trabalho de teologia. É mais a natureza de uma intervenção pública no debate sobre o futuro do Islão. O maior obstáculo à mudança dentro do mundo muçulmano é precisamente a supressão do tipo de pensamento crítico que aqui estou tentando. Se a minha proposta de reforma ajuda a desencadear uma discussão séria sobre estas questões entre os próprios muçulmanos, vou considerá-la um sucesso.

Deixem-me deixar duas coisas claras. Eu não quero inspirar uma nova guerra contra o terror ou extremismo -  a violência em nome do Islão não pode acabar apenas por meios militares. Também não sofro de “islamofobia.” Por várias vezes, eu mesmo fui os três tipos de muçulmana: Uma fundamentalista, uma crente fechada em mim própria e uma dissidente. A minha viajem foi de Meca para Medina,e daqui para Manhattan.

Para mim, parecia não haver maneira de conciliar a minha fé com as liberdades que eu vim abraçar no Ocidente. Deixei a fé, apesar da ameaça da pena de morte prescrita pela Shariah para apóstatas. As futuras gerações de muçulmanos merecem melhores opções, mais seguras. Os muçulmanos devem poder acolher a modernidade e viver num estado de dissonância cognitiva.

Mas não serão só os muçulmanos que beneficiariam de uma reforma do Islão. Nós, no Ocidente não podemos ficar à margem, como se o resultado não tivesse nada a ver connosco. Porque, se os muçulmanos de Medina ganharem, a esperança de uma Reforma muçulmana morre, o resto do mundo também vai pagar um enorme preço, não só em sangue derramado, mas também em liberdade perdida.

terça-feira, 24 de março de 2015

Lee Kuan Yew

Uma pequena notícia no Público de hoje, dá conta da morte de um dos maiores génios políticos do século passado.

Do que era um entreposto britânico em declínio, Lee Kuan Yew, que morreu na noite de domingo, 22 para segunda-feira 23 de Março em Singapura, fez desta cidade-estado um centro regional da finança e de alta tecnologia.

Visitámos Singapura em 2013. Durante o voo, a tripulação distribuiu um pequeno flyer desdobrável que me provocou um certa sensação de desconforto, apesar dos dois principais avisos não se aplicarem no meu caso. Nada de concessões em levar tabaco sem declarar: Multa até $10,000 ou cadeia. Por baixo uma caveira com os dois ossos usuais com o aviso: Morte para os traficantes de droga segundo a “Singapore Law”.


Os amigos que vivem por lá, aos poucos descrevem-nos regras de conduta que têm que ser observadas de forma estrita. 

Não se vendem pastilhas elásticas. Se as levarmos e usarmos estamos sujeitos a multa. Pequeno exemplo da noção dos costumes desta cidade-estado asiática.

A obsessão com a segurança é tal que podemos andar despreocupadamente, a qualquer hora do dia, não obstante os seus 5 milhões de habitantes.


Poderia continuar a narrar série intermináveis de regras e punições, que para um europeu pode eventualmente constituir um limite às liberdades. Certo é que os habitantes e expatriados que lá vivem parecem não prescindir das normas locais.

A mais bizarra que me contaram é a da proibição de circulação de side-cars nos túneis. Um amigo, que tem uma, morou lá durante 3 anos e regressou à Europa sem conhecer a razão.

Singapura é um local rico e seguro. As armas só podem ser usadas pela polícia e militares. Essa coisa de licença de porte de arma para civis, é uma bizarria. 

Mas Singapura não é só um estado dinâmico do ponto de vista económico. O Governo tem também fortes preocupações sociais. Ninguém habita em bairros de lata ou em construções semelhantes a favelas. O estado à medida das suas disponibilidades económicas, lançou-se na construção de edifícios de 10 andares para alojar  a população com menores rendimentos, já que não existe praticamente desemprego. Esses antigos edifícios foram edificados sem elevador. O estado está agora a munir estes edifícios de elevadores, como dizia um amigo meu, uma vez que há dinheiro para tal.

As antigas habitações dos chineses estão a ser preparadas para constituírem uma atracção  turística...

No regresso e já no aeroporto de Changi, comprei um livro sobre o homem que esteve na origem do estado de Singapura: “How to Build a Nation”. Aproveitei as longas horas de viagem para me identificar com as ideias deste génio político, e perceber como Singapura se tornou um dos estados mais ricos do mundo.


Dirigida como uma multinacional, (os salários dos governantes são comparáveis aos pagos pelas multinacionais aos seus gestores de topo) regulamentada até ao mais ínfimo pormenor o estado ilha tem a aparência de uma cidade-jardim onde não há engarrafamentos e poluição, que faz sonhar os visitantes, em particular os provenientes das grandes metrópoles da Ásia. 

Lee Kuan Yew era acima de tudo um construtor sem muita consideração por aqueles que não pensavam como ele, sobretudo aqueles que se atravessam no seu caminho.

Nascido em Singapura em 16 de Setembro de 1923 numa família chinesa, o jovem Lee teve que interromper os seus estudos durante a Segunda Guerra Mundial. No final da ocupação japonesa, parte para o Reino Unido, e inscreve-se na London School of Economics. Mais tarde licencia-se em direito em Cambridge.

Após estudos brilhantes e armado com uma formação académica que o irá ajudar a tornar-se mais tarde um dos analistas mais influentes da Ásia, regressa a Singapura.

Foi assim, que se tornou o assessor jurídico de muitos sindicatos cripto - comunistas e participa ativamente em novembro de 1954, à fundação do PAP , Ação Partido Popular, formação política que promove a união entre Singapura e a Malásia , num quadro de uma federação que também envolvia as possessões britânicas da ilha de Bornéu, futuros estados malaios de Sarawak e Sabah (o sultanato de Brunei recusa-se a entrar naquele jogo). Convencido de que Singapura é então muito pequena para ser uma entidade independente viável, Lee Kuan Yew apoia-se nas populações chinesas ( três quartos de Singapura, um terço da Malásia) para ser ouvido.

Nas eleições de 1955, está entre os três membros eleitos do PAP, de que ele passa a secretário-geral . Em 1959, o PAP obteve uma vitória esmagadora e Lee Kuan Yew tornou-se chefe do governo local. De seguida consegue convencer Tunku Abdul Rahman, o primeiro-ministro da Malásia (independente desde 1957), na formação de uma federação da Malásia. A esquerda do  PAP deixou o movimento para formar uma Frente Socialista (Barisan Sosialis ), mas Lee Kuan Yew continua a governar apoiando-se na antiga oposição de direita , e a Maláyasia foi proclamada em 1963, apesar da oposição da Indonésia. No processo, Lee ganha sua segunda vitória eleitoral, em Singapura.

Após várias vicissitudes a Malaysia fracassou. O divórcio dá-se em 1965 e Singapura torna-se independente na solidão. Essa restrição, paradoxalmente, dá rapidamente a oportunidade a Lee Kuan Yew de mostrar a sua verdadeira dimensão: para sobreviver , Singapura deve obter prêmios de excelência , contribuindo para estabilizar seu ambiente regional. Os meios são a disciplina, autoridade e competência. O guião criou reservas daqueles que não acreditavam no seu projecto. Fica desde então um espaço muito reduzido para a oposição.

No plano interno, o prestígio de Lee Kuan Yew, um boom produzido por uma gestão rigorosa e um sistema jurídico muito restritivo fazem do PAP um partido dominante e sem grande tolerância para com os seus adversários. Na política externa, de importância crucial, dada a vulnerabilidade de estado da ilha, Lee Kuan Yew re-orienta sua diplomacia. 

Membro fundador, sem grande entusiasmo, da ASEAN em 1967 - ele teme o peso da esmagador da Indonésia - Lee descobriu rapidamente os benefícios da Associação das Nações do Sudeste Asiático : resolver conflitos regionais, definir um espaço entre a China e os EUA, e fazer passar a mensagem de alguém cuja estatura vai muito para além das fronteiras de Singapura.

Após 30 anos à frente dos destinos de Singapura, este pequeno estado tornou-se um dos mais ricos e seguros do mundo, com um PIB per capita de $78 700 superior ao da Noruega, país mais rico da europa com um PIB de $65 461.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Manifesto monárquico para o século XXI

  
Uma coisa é o Estado e outra o Povo/Nação, como bem se sabe. O Estado, como hoje o entendemos, é um fenómeno historicamente recente, saído da mente dos ideólogos iluministas da revolução francesa, se bem que as suas raízes já se possam encontrar em Maquiavel, por exemplo. 

Face à integração em curso e à actual tendência globalizante, o ciclo de vida do Estado jacobino entrou claramente na sua fase final, sobretudo na Europa, onde nasceu. Se o seu poder parece mais forte do que nunca, atropelando tudo e todos, mais não é que o estridente e agonizante canto do cisne.

Este fenómeno irrecusável anuncia graves dificuldades para as repúblicas, que verdadeiramente só no Estado se consubstanciam. Pelo contrário, abre enormes potencialidades ao ressurgimento das monarquias, que não são minimamente dependentes do Estado. Aliás, mesmo as actuais monarquias europeias vão beneficiar muito desse definhamento do Estado, que coarcta muitas das suas virtualidades. 

Na verdade, a Monarquia não se distingue da República por propor uma diferente forma de chefia do Estado. A Monarquia é a forma particular como um Povo/Nação se organiza numa comunidade viável e solidária. O rei não governa nem chefia o Estado, mesmo quando em situações histórias extremas a isso se viu obrigado. A Família Real é, isso sim, a mais perfeita representação do seu Povo: quer a memória dos que já passaram, quer o do presente, quer os direitos e a esperança dos que hão-de vir. Os Povos/Nações podem encontrar várias formas de se auto-governar, como já fizeram no passado. A Monarquia é sobretudo o garante da unidade orgânica e identidade do seu Povo/Nação.

A Monarquia não permite, contudo, uma forma qualquer de organização social, porque não cabe nela, por exemplo, a tirania. A Monarquia, para o ser efectivamente, é uma forma especial de organização social, que se caracteriza e define pelos métodos que usa e não pelos fins que pretende atingir, na convicção de que se os meios forem bons, os fins não hão-de ser maus. Em boa verdade, a ciência política sabe já que não é possível à mente humana prever todas as consequências, e as consequências das consequências, que uma alteração social vai suscitar. Um objectivo, portanto um fim a atingir, transforma-se sempre numa causa que vai provocar outros fins, num processo infindável e verdadeiramente incontrolável. É esse o grande pecado social do pensamento republicano e iluminista: julgar que pode controlar o resultado final das mudanças voluntariosas, e que maus meios podem conduzir a bons fins. Portanto, se a ideia de tradicionalismo se pode associar à Monarquia, não é por atavismo ou reaccionarismo ininteligível. É por sabedoria. 

De alguma forma, a Monarquia é o anti-maquiavelismo; porque é o regime dos Princípios e das boas práticas, secularmente testadas. 

Assim, e para melhor consubstanciar o que ficou aflorado, é-nos possível enunciar aqueles que são os 9 grandes Princípios monárquicos, num manifesto claro e de unidade, que permita a todos saber, na diversidade que tanto prezamos, onde estamos e o que queremos. 

Liberdades 

O rei é livre e livres somos nós. Parece simples ser-se livre, mas não é. 

O anseio pelas liberdades é cultural. Por isso, a natureza humana, imutável como é, paradoxalmente aspira à liberdade e por regra constrói as redes que peiam essa mesma liberdade! A Monarquia foi o processo, apurado ao longo de milénios, não só para garantir as liberdades mas também para promover activamente o seu desenvolvimento e enraizamento. 

A República, que em nome da liberdade abstracta tantas vezes coarctou as liberdades concretas (basta pensar na revolução francesa!), afinal não é mais que um subproduto desastrado e mal pensado da aspiração à liberdade que a Monarquia diligentemente promoveu ao longo dos séculos, mesmo quando, à luz de uma desinformada mentalidade hodierna, assim pode não parecer. 

Hoje, um século volvido sobre o terrorismo que acabou com a Monarquia portuguesa, as liberdades estão verdadeiramente em perigo! O Estado todo-poderoso e omnipresente tudo quer controlar e normalizar. Sentimo-lo todos, quotidianamente, nas pequenas e nas grandes coisas, num ciclo vicioso incapaz, pela sua natureza, de se auto-regenerar. Por isso a defesa das liberdades é talvez a principal e mais urgente batalha da Monarquia, ciente de que só ela, na verdade, as pode garantir e promover. 

Diversidade 

Sem as liberdades não pode haver diversidade. A República é, por natureza e ideologia, um regime que aspira à unicidade e só nela verdadeiramente se realiza. E aqui é preciso distinguir as repúblicas modernas, saídas da revolução francesa, das republicas aristocráticas da Antiguidade ou da Idade Média, que não têm nada a ver entre si.

Pelo contrário, a Monarquia é por natureza a harmoniosa congregação do diverso e só com ela a diversidade ganha cidadania. Que o diga Espanha! A diversidade é vida, a unicidade é morte. 

As potencialidades criadoras e inovadoras que a diversidade suscita e desenvolve é o que tem faltado a Portugal, uniformizado à força pela filosofia republicana. E desenganem-se: não há unicidade boa, mesmo que seja aquela que melhor se coaduna com as nossas particulares ideias. A unicidade é sempre má, porque estiola e porque são inadmissíveis os meios que usa para o conseguir. Pelo contrário, a diversidade é natural e rica como a vida e permite que todos e cada um se realizem em liberdade e alegria. E só aparentemente, numa visão de curto prazo, a diversidade pode ser difícil de gerir. O conflito não está aí, mas sim na prepotência unificadora do Estado republicano. 

A República não sabe lidar com a diversidade. A Monarquia nasceu dela, vive dela e só nela verdadeiramente se realiza. Com a Monarquia, pela sua própria natureza, a diversidade é uma garantia. 

Família e comunidades 

A Monarquia é, sobretudo, uma federação de comunidades livres. Como uma grande família, unida no essencial mas diversa nas suas idiossincrasias. Por isso as células-base da Monarquia são as famílias, mais do que os indivíduos. O Homem é por natureza um ser gregário e só neste âmbito verdadeiramente se realiza. O individualismo desenfreado que a República propõe e fomenta é um beco sem saída, que só aparentemente pode conduzir à felicidade e que, na verdade, conduziu a nefastos fenómenos tipicamente republicanos, como são os conflitos geracionais. 

Devolver o máximo possível de soberania às famílias é assim um princípio fundamental da Monarquia, que se deve estender a todos os sectores, a começar logo pela questão fulcral da educação dos nossos filhos. O Estado existe para nos servir e não para nos obrigar a fazer o que ele acha melhor, despindo as famílias de toda a sua natural soberania. É às famílias que compete decidir como querem viver e como devem ser educados os seus filhos, obedecendo apenas, é claro, a um mínimo consensual de princípios inalienáveis. E cabe às famílias organizarem-se, de baixo para cima, nas comunidades que bem entenderem, com todas as liberdades, desde que estas não contendam com as liberdades dos outros. E só em Monarquia esta estrutura modular da sociedade pode florescer em harmonia, porque é da própria natureza monárquica e porque só ela é suficientemente forte e orgânica para equilibrar devidamente este instável e delicado fervilhar da vida livremente vivida. Até porque, e isso é vital, só no interior das comunidades naturais, autênticas, a solidariedade social é espontânea e resulta inegável e imperiosa como no seio de uma família. 

Princípio da subsidiariedade

Muito se apregoa hoje o justo princípio da subsidiariedade, que basicamente consiste em nunca decidir a um nível superior aquilo que pode ser decidido a um nível mais baixo.

No tempo histórico, a Monarquia portuguesa seguiu sempre este princípio não formulado. Promotora do municipalismo e das suas liberdades e responsabilidades (porque não há liberdades sem responsabilidade!), a Monarquia histórica, bem analisada a mentalidade coeva, deixou verdadeiramente o país respirar e tomar organicamente conta de si mesmo, de forma adulta e livre. 

Hoje, os desafios são outros. As verdadeiras comunidades, indispensáveis à sã convivência e à solidariedade social, constroem-se com a liberdade de decidir a esse nível tudo o que aí pode ser decidido, portanto na aplicação do princípio da subsidiariedade. Uma comunidade amputada desta capacidade rapidamente se desagrega. Apesar de o enunciar como desejável, a República tem a máxima dificuldade em aplicar este princípio, com receio de perder o controlo, sobretudo estabelecido na pirâmide centralista que está na sua essência política.

Já a Monarquia, muito mais do que nas grandes super-estruturas sufragadas de tantos em tantos anos por voto universal, assenta na descentralização e na democracia participada e permanente, aliás o seu nível mais autêntico e profícuo. 

Justiça 

O edifício legislativo português é hoje um amontoado contraditório e lacunoso de ditames, e nunca o Direito esteve tão afastado da Justiça. Ninguém hoje sabe sobre demasiadas coisas o que é certo ou o que é errado. A mesmíssima questão pode ter sentenças diametralmente opostas. E, pior, muitos anos depois! 

A ânsia controladora do Estado republicano, apoiada na dependência que dele conseguiu forjar na sociedade, elaborou um monstro legislativo sem pés nem cabeça, qual harpia enraivecida e demente, em constantes convulsões, que regula tudo menos a Justiça. 

Convém aqui deixar claro que a questão não se coloca nem na divisão dos poderes nem ao nível do Poder Judicial, mas no emaranhado legal com que se vê obrigado a lidar. Se bem que esse monstro legal também influa, e muito, na forma ineficaz como funcionam os tribunais e na demasiado frequente impreparação dos juízes. 

Como bem prova a História, a Monarquia não tem, por natureza, a vocação do controlo legislativo, e sabe que o legislador, se tudo quiser controlar, andará sempre atrasado e desfasado em relação à vida real.

É pois natural que seja uma das bandeiras da Monarquia a verdadeira Justiça, assente num conjunto mínimo de leis, absolutamente unívocas, de forma que todos possam saber à partida com o que contar, e suficientemente gerais para garantirem a todo o momento os princípios aplicáveis. Toda a restante conflitualidade social deve ser dirimida com base sobretudo nesses princípios e não em leis burocráticas ou pormenores tecnicistas. A Justiça é que deve enformar o Direito, não o contrário. 

Ética e elites

O que nos remete directamente para outra questão fulcral da mundividência monárquica: a dimensão ética que a vida em sociedade (e portanto o regime) não pode dispensar. 

A Monarquia é sobretudo um regime ético, que se rege por valores. 

Mas desenganem-se todos os que pensam que a Monarquia moderna pode ser um regime confessional ou imiscuir-se nas liberdades de cada um, sobretudo na liberdade religiosa ou de expressão. Pelo contrário, a Ética monárquica não lhe permite perseguir ou limitar alguém pelas suas convicções, como a República fez com a Igreja, num exemplo entre muitos. Nem tem credo oficial. O que não impede, é claro, que o rei tenha e manifeste a sua fé, como qualquer um. 

Os valores monárquicos são de outra ordem e congregam-se sobretudo nas liberdades com responsabilidade, no respeito pelo património cultural e natural, e na garantia de que os legítimos interesses da economia capitalista e consumista não se imponham, sem freio, sobre uma sociedade massificada e alienada. E fá-lo não de uma forma paternalista, à republicana, mas promovendo e garantido uma sociedade diversa e adulta, capaz de fazer opções. Ao devolver a soberania às famílias e às suas comunidades, a Monarquia dota-as organicamente de mecanismos de defesa eficaz contra as centrais de intoxicação pública.

E não se pode, em boa verdade, conduzir um novo processo civilizacional sem a formação de verdadeiras elites, capazes de, pelo exemplo e pela palavra, liderarem a mudança. Ora, também aqui a Monarquia se distingue, por saber essa necessidade e poder enquadrar adequadamente a formação dessas vanguardas. 

A elite é obviamente formada pelos melhores, nas várias áreas do Pensamento, da Arte, da Ciência, da Cultura, da Educação e das actividades funcionais e económicas. São dados objectivos, mensuráveis até, que nada têm a ver com a substância da sua liderança. O que a Monarquia quer não é definir um tipo de elite, nem tão-pouco limitar-se a restaurar as elites tradicionais, mas sim garantir a formação de verdadeiras elites. Assim como, e isso é vital, dar-lhes a devida visibilidade pública, pois só assim podem ser socialmente eficazes. 

Há que ter a coragem de dizer que democracia não é a tirania dos estúpidos, dos ignorantes, dos mal-educados, dos sem-carácter e dos burocratas. E que só a promoção e desenvolvimento de verdadeiras elites, livres e diversas, reconhecidas como tal, nos pode livrar das falsas elites republicanas do jet-set, dos media, da política e dos partidos, e evitar a total inversão de valores que cada vez mais caracteriza a decadente sociedade ocidental.

Cultura

Não é por acaso que o Povo português é cada vez mais inculto. Não só por aquilo que não aprende ou lhe ensinam mal, mas sobretudo pela forma como desordena o seu território, como despreza o seu património cultural e natural, enfim, pela forma como está na vida. 

A Cultura, na sua acepção mais verdadeira, embora não pacífica, remete para a vivência do conjunto dos conhecimentos e comportamentos civilizacionais. Ao contrário do que querem os republicanos em geral, e os marxistas em particular, a Cultura não remete para o indivíduo mas sim para as sociedades, entendidas como conjuntos orgânicos de famílias e comunidades. Cultura não é apenas a soma de conhecimentos, mas sobretudo a vivência autêntica das pessoas em sociedade e no seu tempo; a forma de estarem na vida. Por isso as culturas são nacionais e até regionais. 

As três revoluções que Portugal sofreu num curto espaço de tempo histórico (a liberal, a republicana e o 25 de Abril), independentemente dos seus eventuais méritos, conduziram a uma tripla decapitação da sociedade, com todas as consequências nefastas que isso comportou para o nível e refinamento cultural do Povo português.
Por isso a massificação e a globalização tão facilmente estão a destruir as indefesas culturas portuguesas, não tanto pelo fácil acesso à informação e ao mundo, mas sim pela ideia, incutida por todas essas revoluções, sobretudo pelo republicanos e pré-republicanos, de que as culturas portuguesas são uma coisa menor e atávica, a evitar. 
Hoje, as culturas portuguesas estão praticamente reduzidas a fenómenos residuais e por vezes risíveis, do tipo folclórico. Os portugueses como que têm vergonha das suas culturas. E, se nada de substantivo e essencial distingue já as culturas portuguesas das restantes, o futuro próximo será bem pior. 

Pelo contrário, a Monarquia emana das culturas nacionais e só nelas verdadeiramente tem razão de existir. Não é por isso difícil perceber que só a Monarquia, sobretudo no actual contexto europeu e globalizante, pode verdadeiramente promover e acarinhar as culturas portuguesas, preservando assim, contra ventos e marés, a nossa identidade enquanto Povo e a nossa qualidade de vida. 

Transcendência

Dizem as repúblicas, e nisso foi pioneira a Constituição norte-americana, que o Homem nasceu para ser feliz e procurar a felicidade. Ninguém tem dúvidas de que a felicidade é uma coisa amável e desejável. 

A questão não está em querermos ser felizes, atitude assaz saudável, mas sim na obsessão pelo aqui e agora, já!, que domina o actual estado de espírito das sociedades ocidentais. O hedonismo reinante, fruto directo do pensamento republicano e da colonização cultural que os EUA infligiram ao mundo em geral e à Europa em particular, é na verdade um beco sem saída, que muito raramente conduz à felicidade. Sabe-se bem que a satisfação das necessidades é um processo sem fim, pois mal uma necessidade é satisfeita imediatamente surgem outras para satisfazer, num processo infindável e irrealizável. Quem melhor aproveitou a doutrina reinante foram as empresas, promovendo necessidades artificiais que conduziram ao consumismo desenfreado e ao endividamento das famílias, num fenómeno demoníaco que traz tudo menos a qualidade de vida e paz de espírito que podem, de facto, suscitar a felicidade. 

A Monarquia tem sobre esta questão uma posição completamente diferente, pois toda a sua estrutura se baseia muito mais na valorização do Ser do que do Ter, no serviço público, na renúncia voluntária e na autodisciplina; numa palavra, na transcendência. Ao promover e premiar a elevação dos espíritos e dos comportamentos, a Monarquia propõe afinal, a cada um de nós, que encontremos a felicidade na procura de uma vida melhor e na honrosa satisfação do serviço prestado e do trabalho bem feito. 

A Honra, esse conceito transcendental tão esquecido e desprezado, é uma pedra de toque da mundividência monárquica. 

Europa

O processo de integração europeia é imparável e irreversível em tempo útil. A Monarquia, ao contrário do que se possa pensar, não é incompatível com este processo, como se comprova nas várias monarquias europeias. Pelo contrário, a Monarquia é o principal garante de que as identidades e culturas nacionais não se dissolvem no conjunto. E só isto é mais do que suficiente para se ser monárquico. Contudo, há uma questão mais funda, que afinal tem a ver com tudo o que ficou dito e que pode ser considerada como o seu corolário, e portanto assume a categoria de um princípio. 

A actual civilização europeia, fruto dos desvarios dos séculos XIX e XX, do modelo estatal e da desleal competição mundial, entrou em colapso endógeno e também assistimos hoje ao seu agoniante canto do cisne, incapaz de se defender dos efeitos perniciosos da globalização e do capitalismo selvagem.

Muito tem de mudar para que a Europa reassuma a sua liderança civilizacional. O que, por tudo o que já ficou exposto, só conseguirá pelo ideário monárquico. Assim, dada a interdependência comunitária e o mundo globalizante em que vivemos, não basta que os portugueses tenham uma Monarquia, como às actuais monarquias europeias não bastou o facto de o serem para, de forma eficaz, evitarem a disseminação dos princípios republicanos que minam as respectivas sociedades.

É assim necessário construir e partilhar um movimento internacional que vise o retorno à Monarquia de todos os povos europeus, de forma a revitalizar a Europa como o farol civilizacional que lhe cumpre ser, criando no seu seio um espaço onde as pessoas, as famílias e as comunidades, possam ser, de forma autêntica e livre, o cadinho onde se forja um futuro melhor.